Foto: Nomadismo Digital
Leia aqui o novo artigo de opinião de Luís Pistola.
Ela vem em passo lento, confiante, andando para ser vista. Ele está à porta da loja, acabando de a lavar, gozando a réstia de calor do quase lusco-fusco do Inverno lisboeta.
Ouve-se a voz dele em jeito gingão
– “Ui que ela vem toda lampeira! E com penteado novo!”
– “Vim agora do cabeleireiro.”
– responde-lhe ela com satisfação.
– “Olha lá, e quem é que te vai desfazer esse penteado?”, retorque ele. Por momentos penso no significado daquilo e ela também porque há um momento de silêncio enquanto abrando o passo curioso; ela larga uma gargalhada, e diz-lhe dengosa
– “Oh, nada disso: vou agora para casa!…”
– enquanto ele volta à carga – “Mas olha que ele está a pedir para ser desfeito!”
Eu continuo rua abaixo perdido de riso. Já não ouvi o desfecho da cena, mas sigo olhando os turistas encantados com a luz e os azulejos, perguntando-me em qual das suas terras é que uma tal conversa é possível nesta Europa.
Em que outra capital deste continente, cheio de manias modernas e gente sisuda armada em importante pela cor berrante das gravatas, poderemos assistir a um dichote tão espontâneo e tão gracioso e tão burlesco como este? As hipóteses escasseiam.
Talvez em Madrid ou Roma, mas poucas mais. O famoso encanto que faz de Lisboa um dos destinos da moda turística passa não só pela sua luz, pela sua arquitectura tradicional requintada, pelas suas cores, pela diversidade dos seus recantos, pela gastronomia que inventou o cosmopolitismo gastronómico para o mundo, pelo brilho azul do Tejo reflectido nas colinas, enfim, pela sua beleza construída: está sobretudo nas suas gentes.
Está nesse seu carácter de terra antiga, mais velha do que Roma, nestas gentes que vindo dos mais recônditos cantos de Portugal, da Galiza, d´Aquém e d’Além Mar em África, na Ásia e na América, aqui se juntou, aqui forjou uma aldeia grande, uma cidade-aldeia, de bairros onde os vizinhos se falam, se conhecem, se permitem trocar gracejos mais ou menos arrojados.
E mesmo naqueles bairros modernos, onde a imitação do mau e a importação de hábitos incivilizados tem atenuado e apagado isso, é ainda a cidade onde o desconhecido mete conversa na paragem do autocarro, comenta o futebol e a política no café com o vizinho da bica ao lado, pega no turista e vai levá-lo ao lugar pretendido no mapa virado do avesso.
A cidade onde a palavra se faz braço estendido e familiar ao desconhecido.
A cidade de bairros que são aldeias. A cidade dos aldeões que inventaram o cosmopolitismo.
Luís Pistola
Colunista da Tomar TV